A crise que o Brasil enfrenta pode ser resumida a um problema de negociação. Esse é o diagnóstico do antropólogo americano William Ury, de 62 anos, um dos criadores do Programa de Negociação da Universidade Harvard. Nos últimos 36 anos, ele ajudou a solucionar alguns dos maiores conflitos do mundo: dos embates políticos na Venezuela a guerras na Chechênia e nos Bálcãs – além de mediar questões delicadas na Casa Branca ou no Kremlim. Por aqui, ficou mais conhecido por ter ajudado o empresário Abilio Diniz a resolver suas pendengas com Jean-Charles Naouri, CEO do Grupo Casino. Autor dos livros Como Chegar ao Sim e Como Chegar ao Sim com Você Mesmo, lançado em 2015, ele faz uma análise sobre o atual momento do Brasil. Embora reconheça que “a crise é profunda e vai piorar antes de melhorar”, enxerga nela a oportunidade para o Brasil avançar a outro patamar da democracia. Nesse novo estágio, diz, o objetivo é atingir o “triplo ganha”, um resultado que beneficie os dois lados da discussão e a sociedade.
Que lições de negociação podem ajudar o Brasil a sair da crise?
Há um caminho grande a ser percorrido. A situação não pode ser subestimada. A crise é profunda e vai piorar antes de melhorar. Porém, há uma oportunidade de mudar as bases do sistema – e não apenas fazer um reparo rápido. É o momento de revisar os valores da democracia. Não se pode perder de vista o quanto o Brasil caminhou nos últimos 40 anos, desde o fim da ditadura militar. O primeiro passo para mudar é aceitar a realidade, mesmo que seja dura. Todos concordam que o sistema político no Brasil está quebrado. Então, o país parece estar no caminho certo, ainda que sofra durante o trajeto.
O primeiro passo é reconhecer. E o segundo?
Uma das razões básicas de uma crise, um conflito, é o abalo de um elemento-chave: a confiança. Outro dia vi uma estatística estarrecedora. Pessoas de diferentes países responderam quanta confiança tinham em pessoas fora do círculo formado por seus familiares diretos, ou seja, na comunidade, no estado, no país. Na Noruega, 64% das pessoas disseram confiar em quem está fora de seu núcleo familiar. No Brasil, apenas 2% responderam o mesmo. Acredito que, se perguntarmos hoje aos brasileiros quanta confiança têm no governo ou no Estado, esse índice será ainda menor que 2%.
O que devemos fazer para reconstruir a confiança?
A etapa número 1 é lidar com a verdade. Um dos fatores que matam a confiança é a corrupção. No Brasil, jornais e revistas falam sobre esse tema. Isso é saudável. É como ir ao médico e receber notícias ruins. É duro, mas é melhor do que ele esconder o mal de você. Esse é o momento em que a mudança pode acontecer. Porque há 20 anos, havia corrupção, mas não vinha à tona. O fato de grandes executivos e políticos estarem indo para a cadeia é um sinal da reconstrução da confiança. Mas é natural que a primeira reação das pessoas seja emotiva. Elas pensam: “Está tudo acabado”. É fácil entrar em desespero e perder as esperanças em relação ao país. Relaciono essa tendência a um estudo [divulgado em 1969, no livro Sobre a Morte e o Morrer] que a psiquiatra suíça Elizabeth Kubler-Ross fez com pacientes terminais. Ao receber seus diagnósticos, a primeira reação dessas pessoas, em geral, era a negação do quadro. Depois, vinha a raiva. Então, a raiva dava espaço à tristeza e à depressão. A partir desse ponto, o paciente começava a resolver o problema. O mesmo acontece nas negociações das quais participo. Quando a pessoa atinge a aceitação significa que decidiu não focar mais no passado, mas, sim, no futuro. O caminho estará aberto, então, para a busca de soluções.
A crise brasileira é, na essência, um problema de negociação?
Sim. Todos os conflitos são essencialmente um problema de negociação. Cada vez mais, a negociação é o principal caminho das tomadas de decisão em diferentes áreas, no mundo todo. Uma geração atrás, o princípio das decisões costumava ser o poder que a autoridade ou a hierarquia conferia a alguém. Agora, na democracia, na sociedade civil, nos negócios, na política, tudo é negociado. O que precisamos é inventar novas formas de negociação, mais abertas e cooperativas. Quando vim para o Brasil pela primeira vez, 30 anos atrás, muita gente tinha a ideia de negociação no sentido de “quem está ganhando?”. Agora, as pessoas estão se dando conta de que em uma negociação bem-sucedida os dois lados se beneficiam. É o “ganha-ganha”. O próximo desafio é chegar ao “triplo ganha”. Nele, ganham os dois lados e também a sociedade. Acabei de voltar da Colômbia, trabalhando com o governo para tentar colocar um fim a 50 anos de guerra civil. Não se trata apenas de negociar entre o governo e as Farc. O que está em jogo é a Colômbia. É a sociedade. Este princípio vale para todos os países. Vale para o Brasil neste momento.
Como conduzir uma negociação quando o outro lado não tem interesse em chegar a um acordo?
A pessoa mais difícil de negociar nunca é quem está do outro lado da mesa. É quem olha para você no espelho todas as manhãs. O mais difícil, portanto, é lidar consigo mesmo. Em outras palavras, a tendência humana natural é reagir às situações. Em uma negociação, em que há muito em jogo, tendemos a ficar com medo. Em função disso, desistimos do conflito ou ficamos bravos, o que leva à briga. Depois nos arrependemos. Há um ditado que diz: “Quando você está bravo, faz o melhor discurso do qual irá se arrepender”.
Parece ser o caso de alguns políticos brasileiros…
A base do sucesso em uma negociação é suspender o que pode ser sua reação natural e “ir para a varanda”. Uso essa expressão como uma metáfora. Significa sair da cena e ir para um lugar de onde possa assistir à situação de fora, com clareza, calma e perspectiva. Na varanda, podemos manter o foco no que é mais importante.
Pode dar um exemplo?
Trabalhei na Venezuela entre 2002 e 2004, a convite do ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter e da ONU. Na época, havia um referendo sobre a permanência ou não de Hugo Chávez na presidência do país. Observadores internacionais temiam que o debate culminasse em uma grande violência civil ou até numa guerra. Meu último compromisso foi mediar a relação de Chávez com os donos dos veículos de mídia que repercutiam os fatos. Tive uma série de encontros com o presidente. Em um deles, Chávez, contrariado com uma posição minha, inclinou-se até ficar próximo ao meu rosto e esbravejou, por 30 longos minutos. Tive de lidar com meu primeiro adversário: as minhas emoções. Fui para a varanda e pensei: “Entrar em uma discussão com o presidente da Venezuela vai ajudar a avançar na causa pela paz?”. Ele estava no estágio da raiva. Logo depois, veio a tristeza. Então, parou de falar e me perguntou o que fazer. Foi minha abertura para reverter a situação e me aproximar de maneira construtiva de novo.
Em que estágio emocional está o Brasil?
Está entre o medo e a raiva. O passo seguinte tende a ser a tristeza e a aceitação da magnitude do problema. Esse é um bom cenário, pois pode levar a uma solução criativa.
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